Edward Said errou. Durante a Primeira Intifada (1987-1993), o intelectual palestino-americano concluiu que, paradoxalmente, a ocupação dos territórios palestinos, iniciada em 1967, lançava as sementes da reconciliação. A experiência compulsoriamente compartilhada pelos dois povos curaria as feridas dos conflitos anteriores, propiciando um futuro de convivência pacífica sob um estatuto de igualdade. De fato, porém, a longa ocupação irrigou, nos dois lados, a planta da vingança, a mais permissiva das estruturas mentais.
Genocídio. Os atentados do Hamas, no 7 de outubro de 2023, genocídio em miniatura, expressaram as intenções formuladas pela carta de fundação da organização terrorista. A guerra justa deflagrada a seguir por Israel converteu-se em guerra de limpeza étnica contra o povo palestino, descrita por uma comissão de inquérito da ONU como campanha genocida. Vingança, duas vezes.
Ehud Barak e Ehud Olmert, antigos chefes de governo de Israel, empregaram as expressões “crimes de guerra”, “massacres” e “limpeza étnica” para denunciar a barbárie cometida na Faixa de Gaza em nome do Estado judeu. Os dois, contudo, recuaram diante da palavra “genocídio”. Há um motivo para isso.
Raphael Lemkin, judeu polonês, delineou o conceito em 1941, investigando a perseguição secular aos judeus. Depois, em 1948, à luz do horror de Auschwitz, foi o autor intelectual da Convenção contra o Genocídio (tinyurl.com/2khsk3hf). Com a finalidade política de contestar a legitimidade histórica do Estado judeu, a propaganda antissemita acusa Israel de genocídio desde a guerra árabe-israelense de 1948, tentando traçar um sinal de equivalência com a Alemanha nazista. O horror em curso na Faixa de Gaza confere substância à acusação ignominiosa.
Não faltaram palestinos indignados diante da matança cometida pelo Hamas no 7 de outubro. Por outro lado, sobraram manifestações populares de júbilo nos territórios palestinos e, sobretudo, não se registraram protestos de massa contra a organização terrorista. O regozijo e o silêncio ofereceram aos líderes extremistas israelenses o álibi para qualificar Gaza como uma “cidade perversa”, desumanizar os palestinos e acender a fogueira de uma guerra sem limites.
Paralelo inevitável: a sociedade israelense aceitou o roteiro da vingança. As manifestações por um cessar-fogo concentram a indignação no desprezo do governo pela sorte dos reféns, não na catástrofe infligida à população de Gaza. O apoio popular à paz em dois Estados reduziu-se a uma estreita minoria. O povo de Israel desiste da luz, resignando-se à condição de “super-Esparta”, invocação utilizada por Netanyahu para conduzir a limpeza étnica em meio ao isolamento internacional.
“Almas Mortas”, de Nikolai Gogol, publicada em 1842, é um retrato da Rússia czarista. O título oscila no balanço de uma ambiguidade, referindo-se tanto aos servos mortos elencados pelos proprietários de terras quanto à mesquinharia e podridão da pequena nobreza russa.
Meio século de ocupação secou as almas de israelenses e palestinos. A pulsão da vingança, explorada por extremistas dos dois lados, deteriora por dentro as duas sociedades. Deslocados exaustos marcham em cenários de ruínas; reféns alquebrados são exibidos como troféus de guerra. Na Terra Santa, manda a morte, física ou espiritual.
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