Ao lado de onde moro há uma construção interrompida. Uma estrutura de aço de dois andares, erguida e depois abandonada. Honestamente, não sei o que houve ali nem o que se decidirá. Por ora, serve de abrigo para os pássaros que vêm fazer seus ninhos. Um par deles —talvez águias, talvez gaviões; não saberia dizer, não sou especialista em nomes, mas reconheci o bico curvo e as garras afiadas— pousou certa vez sobre a laje de cima.
Talvez sondassem se poderiam chamar aquele lugar de lar. Não sei. Talvez estivessem se apresentando. Da sala, eu os observei, emocionada com aquela visita.
As aves voaram até o muro e, a partir dali, assistiam à vida em casa. Me viam —e eu as via de volta. Foi então que minha filha apareceu, subindo as escadas com a mochila ainda nas costas, quando voltava da escola.
As aves a acompanharam com os olhos atentos, movendo a cabeça na cadência dos passos de Thulane, que entrou pela porta sem perceber que havia sido observada. Desde então, já se passaram alguns anos em que elas moram na copa da última e mais alta árvore da ladeira.
Tenho pensado muito nessas aves. Com minha filha, assisto a programas sobre animais e me encanto com o modo como constroem seus ninhos, protegem seus ovos e alimentam suas crias pelo tempo necessário até que voem sozinhas.
Admiro o instinto paciente, a precisão dos movimentos e como eles se tornam uma dança. Neste momento, enquanto escrevo, vejo-as sobrevoar. Observo como leem o cenário e se anunciam acima de nós. Encanta-me o modo como pairam sobre o tempo, como se soubessem de algo que nós esquecemos.
É por isso que decidi retomar nesta Folha a série de textos que venho escrevendo sobre os orixás e o candomblé, com uma edição especial dedicada às Iyá Mi —as grandes mães.
Reverenciadas nos terreiros como princípio feminino ancestral, um entendimento mais comum é que as Iyá Mi não são orixás no sentido convencional.
No candomblé, aprendemos que tudo tem seu tempo, seu caminho e seu segredo. As Iyá Mi são guardiãs desses segredos. São o ventre que gesta o mundo e o silêncio que impede o mundo todo de se desfazer.
Na grande maioria da prática religiosa, não há iniciação direta para elas —não se inicia para Iyá Mi como se inicia para Xangô ou Iemanjá. Há, sim, um culto reservado, transmitido entre mulheres que mantêm viva uma aliança com esse poder. E existe, sobretudo, respeito.
São forças que não recebem oferendas de qualquer um nem respondem a chamados levianas. São forças profundas e originárias, associadas à fertilidade, à justiça e à interdição. Ligadas a todos os pássaros —sobretudo às aves de rapina—, são senhoras do poder oculto e da sabedoria antiga.
Uma de suas representações mais conhecidas é a coruja, que tudo enxerga na escuridão e é capaz de virar a cabeça quase por completo. Nada escapa à sua vigilância.
Outra ave de rapina que as representa é o urubu, devorador de vísceras, cujo estômago é capaz de dissolver ossos e cuja existência é fundamental para o ciclo da natureza, ainda que seja muitas vezes incompreendido por nossa lógica da aparência.
De um ponto de vista, podemos compreender as Iyá Mi como expressão simbólica de um poder feminino ancestral que sobreviveu ao se esconder. Na história colonial e patriarcal, tudo que envolvia mulheres negras com poder e saber foi tratado como ameaça. Chamadas de bruxas, demonizadas, perseguidas. As Iyá Mi são a resposta espiritual a esse processo: forças que resistem insubmissas, com memória.
São um arquivo vivo da experiência de resistência das mulheres negras no Brasil e no mundo africano-diaspórico.
Volto, então, àquela tarde em que minha filha subia as escadas e foi observada por aquelas aves silenciosas. Entendi, ali, que estava sendo lembrada. Lembrada de que existem presenças que nos acompanham mesmo quando não as nomeamos.
De que há olhos que nos vigiam com amor severo, que nos protegem sem fazer qualquer alarde. E que existe uma ética do cuidado que não se explica com palavras, mas se aprende com o tempo —e com o silêncio.
Falar das Iyá Mi não é fácil. E talvez não deva ser. Mas neste gesto de escrever, deixo nesta coluna uma fresta delas.
Uma tentativa de lembrar que há forças femininas ancestrais que seguem entre nós, mesmo quando a racionalidade tenta negá-las. Que seguem nos observando do alto da árvore, nos acolhendo, nos instigando, nos guiando. Iyá ô!
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