A farsa desdobrou-se em dois atos, separados por dois anos. Em 2023, às vésperas de se aposentar do STF, Rosa Weber obteve uma sessão virtual destinada a proferir seu voto pela descriminalização do aborto. Na sequência, conforme combinado, Luis Roberto Barroso pediu vista, suspendendo o julgamento. O segundo ato repetiu o primeiro. Barroso liberou o caso para depositar seu voto, em sessão virtual noturna, em seu último dia na corte, alinhando-se a Weber. A seguir, como combinado, Gilmar Mendes pediu vista, congelando o processo.
A dupla encenação destinou-se a atender à vaidade de Weber e Barroso. Nas sessões sem debates, o STF renunciou substantivamente ao estatuto de colegiado, mas agiu coletivamente para iludir o público, simulando um julgamento. As ações entre amigos formam capturas privadas da instituição pelos ministros, com a finalidade de dourar suas biografias. Os juízes julgam para si mesmos, utilizando a corte suprema como ferramenta de aquisição de um bem de valor simbólico.
“O debate ainda não está amadurecido na sociedade brasileira”, explicou Barroso ao solicitar sua alongada vista. Segundo a ficção que vende, a dócil sociedade brasileira “amadurece” na hora exata do “amadurecimento” de sua decisão personalíssima de deixar o STF. Mas, ao conjurar com Gilmar um novo pedido de vista, ele reconhece a natureza farsesca de seus atos.
Os EUA legalizaram o aborto por via judicial, acendendo o pavio de uma polarização política extremada de meio século que desaguou na reversão da decisão por uma Corte Suprema de maioria conservadora. A Itália fez o mesmo, mas por via parlamentar, sedimentando em lei uma opção social majoritária.
Os votos dos dois ministros imitam o percurso americano, avançando sobre prerrogativas do Congresso. Nesse passo, eximem os partidos que defendem o direito ao aborto do dever de persuadir o eleitorado e oferecem uma bandeira à direita reacionária engajada na proibição absoluta da interrupção da gravidez. O ativismo “iluminista” escuda-se na covardia: Weber e Barroso estarão atrás das cortinas quando seus votos simbólicos produzirem efeitos reais.
No seu voto, Weber enfatiza o “direito da mulher”, ajuntando secundariamente o “direito à saúde”. O curto voto de Barroso inverte as prioridades, justificando a descriminalização essencialmente por razões de saúde pública. O voto dele, não o dela, descortina os caminhos para um debate esclarecido de mérito na arena social, algo que solicita autocontenção do STF.
O argumento do “direito da mulher” (“meu corpo, minhas regras”) ignora que o feto é um “outro corpo” e, ainda, que a legislação impõe obrigações financeiras paternas durante a gravidez. Politicamente, é receita de fracasso inexorável para as campanhas pela legalização do aborto.
Já a interpretação do aborto como direito social amparado por imperativos de saúde pública desloca o debate para a esfera das escolhas pragmáticas, propiciando a delimitação de seus limites e condicionantes. É a única via capaz de produzir uma maioria política favorável à mudança da lei penal retrógrada.
Barroso poderia aposentar-se, primeiro, e depois utilizar sua voz respeitada para conferir espessura e profundidade ao debate público sobre o tema. Preferiu atribuir a Afrodite, deusa da vaidade, a missão de esculpir seu legado.
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