A propaganda ressaltava o fato de que o porta-malas do Ford Galaxie 1968 era espaçoso. Para ilustrar a chamada, vê-se o bagageiro aberto com uma mulher deitada, a boca amordaçada e os braços presos atrás do corpo sob o slogan: “agentes secretos acham bastante razoável o espaço do porta-malas do Galaxie”.
Fazia quatro anos que estávamos sob o jugo da ditadura e a desfaçatez da peça é a prova de que o perverso não se contenta com o próprio ato. Precisa exibi-lo para melhor gozar dele, pois a obscenidade é parte integrante da cena.
O infame anúncio nos remete às imagens que compõem o último filme de Kleber Mendonça, “O Agente Secreto”.
Desde a primeira tomada —uma abertura que já nasceu clássica— somos confrontados com o horror do qual a obra trata. A câmera sobrevoa o Fusca de Wagner Moura, impecável no papel, entrando num posto de gasolina de beira de estrada. Ela segue até a altura do chão de terra batida onde se vê, em primeiro plano, a sola dos pés de alguém coberto com um papelão. Tá lá o corpo estendido no chão. Nessa cena memorável, temos a estética, o assombro e o humor macabro que nos acompanharão durante três horas de projeção que passam voando.
A feiura impera nas locações, nos personagens, na arbitrariedade, na violência explícita. É o Brasil antiturístico, que Narciso acha feio. Mas se engana quem pensa que é uma obra restrita ao período que lhe serve de pano de fundo, anos de chumbo.
O que vimos recentemente no Rio de Janeiro —121 mortes perpetradas pelo poder público— prova que Mendonça fala de hoje, e está longe de carregar nas tintas.
A propaganda do Galaxie nos lembra postagens diárias de comemoração dessas mortes, de alusão ao extermínio de jovens negros e outros chorumes que circulam impunemente pela internet. Que se trate de um anúncio oficial da Ford serve para lembrar da participação do empresariado no financiamento da ditadura.
Como vimos na Operação Carbono Oculto, Faria Lima, crime organizado e políticos corruptos precisam falar a mesma língua para se manter no poder. A tentativa de enfraquecer a Polícia Federal depois da bem-sucedida operação, isenta de mortes, não aponta para outra coisa.
Mendonça também lembra que reportagem recente mostra que, durante a Guerra da Bósnia, vislumbrou-se uma oportunidade turística. Italianos entediados saíram de férias para fazer um esporte radical: atirar em homens, mulheres e crianças durante o conflito dos Bálcãs. Não estavam em trincheiras enlameadas em pleno front defendendo ideais ou territórios, mas sob prédios bem seguros, brincando de tiro ao alvo.
Afinal, quem compraria uma arma se não alimentasse o sonho nada secreto de atirar em alguém? Pelo prazer de treinar a pontaria bastaria o paintball. “Bacurau” forever.
“O Agente Secreto” tem pontas soltas no roteiro e a captação do som segue sendo um problema do nosso cinema, mas nada que arranhe a magnitude da obra.
Se não bastasse o feito, somos agraciados com o reencontro com a atriz Tânia Maria, num papel que homenageia todas as mulheres que, não participando dos desmandos masculinos no poder, nunca desistem de lutar contra eles.
Vida longa ao cinema de Kleber Mendonça e sua bela trupe denunciando a triste atualidade do mal.
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