Escrevo este texto dentro de um avião prestes a decolar. Olho a pista sem o medo que sentia antes, pensando: se alguma coisa der errado, tudo bem, já posso morrer. Por muitos anos, eu não podia.
Eu era a mãe praticamente solo de uma menina de três anos, morando em uma cidade em que não tínhamos nenhum familiar. Eu tinha amigas, é verdade, mas elas estavam igualmente doidas, empurrando carrinhos de bebê num país em que a maioria das tarefas domésticas ainda recai sobre as mulheres e numa cidade tão caótica que, para pegar um termômetro na casa de alguém, eu arriscava encarar mais de uma hora de trânsito.
Como disse em um dos meus contos: eu era uma mulher dentro do recorte de uma janela, de um prédio, de um condomínio, de um bairro, de uma cidade. Amargando toda a solidão do isolamento urbano, um estar sozinho mesmo estando tão rodeado.
Às vezes, quando estávamos só eu e minha filha, eu perguntava: quem quer pipoca? Ou: quem quer suco? Como se ali houvesse mais alguém além dela. Só anos depois me toquei que essa escolha sintática é inconsciente — “quem quer” em vez de “você quer?” — era para criar a ilusão de um coletivo, de um lar aquecido por uma pluralidade de sujeitos.
Dar broncas nela me entristecia. Ela ficava com raiva e queria correr para outra pessoa mas, não tendo opção, se resignava a se lamuriar de mim junto a mim.
Ficar doente e cair de cama era um prazer a que eu não podia me dar. Mesmo com febre, às sete da manhã eu estava de pé, rumo ao jardim de infância ou ao parquinho, entupida de café para dar conta daquilo que minhas células se recusavam a dar.
Alguns anos depois de viver tudo isso, me casei. E, em seguida, mudei-me para a cidade onde nasci. Ali, quando eu gritava “quem quer suco?” diversas pessoas respondiam. Quando dava bronca na minha filha, ela escolhia em que colo queria se consolar. Quando eu pegava uma gripe, convalescia.
Nos meses seguintes, minha filha descobriu de onde veio. E, tão importante quanto, descobriu para onde sempre pode voltar. Não precisava ser na minha terra de origem, podia ser em qualquer lugar em que uma aldeia afetiva se erguesse e conseguisse prosperar.
Qualquer canto em que eu deixasse de ser uma heroína e voltasse a ser medíocre. Maravilhosamente medíocre. Nem forte, nem fraca. Nem grande, nem pequena. Uma mãe que está lá mas, às vezes, falta. E, quando falta, é substituída.
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Agora olho pela janela do avião de uma outra maneira. Ainda sinto um frio na barriga quando estou perto da decolagem, mas então penso na minha filha como uma fruta encaixada no galho de uma árvore frondosa. Penso em mim como uma fruta encaixada num outro galho dessa mesma árvore frondosa.
Não controlo ventos, nem tempestades. Posso balançar, posso cair. Não que eu queira, estou mais feliz do que jamais estive, justamente por poder cair estou mais feliz do que jamais estive, mas posso. E porque posso, afivelo os cintos de segurança sem aquele velho medo de avião, sem aquele velho medo de tudo.
Aterrisso. Caminho por avenidas de outras cidades. Me aventuro por lugares desconhecidos. Me perco. Ando sozinha na noite. Converso com pessoas que nunca vi. Sou do tamanho que sou. E, porque já posso morrer, vivo muito como há muito não vivia.
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